domingo, 30 de setembro de 2012

Rodadas de Poemas com Elisa Lucinda



De Elisa Lucinda
Trato

 Imagem: José Carlos Costa



Muito bem, Senhor Acaso, eu não vim lhe perturbar.
Mas que o senhor podia se ajeitar,
e fazer em minha vida,
já a partir de amanhã cedo,
um espetáculo emocional das coincidências....
ah, isso podia!

Como? É assim:
eu saio de casa perfeitamente bonita sem defeito,
sem artifícios e sem esforço
(“dia esse que acontece de cem em cem anos”,
diz o fantasma de Flávio Cavalcanti que às vezes
visita o meu júri e domina o posto).

Encontro ele sem querer
(ele o amor, bem entendido).
E é naquela quitanda da rua de trás
que eu nunca entrei porque achava o dono amargo,
e por isso duvidava, dedutiva, do gosto de suas frutas.
Mas é lá, naquela quitanda.

Eu escolhendo bananas.
Chegou e foi direto lá porque não queria chegar assim,
de mãos vazias, sem ao menos uma penca pra me oferecer.
Achei lindo, nós em meio às amarelas dúzias.
Lá fora, à tarde, danando de beleza o natural cenário:
É rosa-âmbar de outono e o sol cai.
Não preciso dizer mais nada.

Sem neblina, um nítido encontro com a luz do real entre nós, Ele me beija e diz: “Minhas montanhas agora pertinho de mim, amor esquecido, eu nunca tinha pensado nisso, meu amor gira por você, minha linda negra flor do mar”. E me beija de novo. Pronto. É perna bamba, a fraqueza da carne. Eu já não respiro, pronto, lá estou eu, ainda que sereia, a me afogar.

Pois muito bem, Senhor Acaso, é de amor o meu mar, agora é contigo. O roteiro já está pronto. Só falta é gravar.





sábado, 29 de setembro de 2012

Rodadas de Poemas com Elisa Lucinda



De Elisa Lucinda

Som na caixa!

A tarde cai com maestria e brilha.
Tenho vontade de cantar  a ponto de estourar!
Meus erros se dissolvem, os problemas se constrangem
diante do  belo fogo amarelo pintando a barra do dia.
Deslumbrante modo este do sol se pôr.
Quem pode com a beleza da vida, meu pai?
Quem pode duvidar do milagre da transitoriedade?
Tudo isso, as flores, esta brisa, os bilhetes de amor,
os lençóis marcados de  beijos , os rouxinóis e eu , tudo passará!
Menos essa vida que pulsa e é sempre outra
e  que se põe em presença de todos os viventes a cada tempo.
Que se mostra nua, crua,  bela , poderosa,  senhora  flutuante entre os ventos.

Desço a rua ladeira onde teço  meus dias,
onde vive minha casa branca,
porto seguro de minha alma com olhos acostumados a reparar.
Acabada de se banhar, a mesma alma, cheirando à colônia dama da tarde,
quase dança dentro do vestido florido de mulher e de menina.
Azul o céu para onde vou e é azul também  o que deixo atrás das colinas.
Todos os óbvios são mistérios: da sensação de batismo que dá um cabelo molhado e limpo roçando a nuca da gente, até os comoventes coloridos celofanes que envolvem os docinhos confeitados das festas de criança.
Tudo é enigmaticamente simples. Todo presente vira logo lembrança.
O parentesco entre as coisas  é tão natural que parece que todo mundo entende o motivo pelo qual as pipas são primas das bandeirinhas de São João .
É um prazer saber. Nem sei se eu sei não.
Mas me excita viver!

Izidoro pintando a varanda, faz cheiro de Natal vir das paredes.
Varanda, ô palavra ensolarada!
Todo ano meu pai pintava nossa casa  em dezembro.
 Eu sigo a tradição só pra sentir a bagunça gostosa que a memória olfativa das
cores  apronta em meu coração.
Não trago novidades.
Sou apenas vítima da claridade de uma estação.
Minha voz quer sair do peito para se juntar ao grande coro e com razão:
Louvando a intensidade de cada instante
as cigarras sempre cantam no verão.

 Disponível em:



sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Rodadas de Poemas com Elisa Lucinda



De Elisa Lucinda
A aula de Recreio



Amo esse rio como se ama um menino.
A chuva que ajuda a caminhar melhora meu destino.
O sol na tarde da Vila confirma a vocação destas tardes para o papel de paraíso.
Queria que ele estivesse aqui comigo,
Ele, o amor que também é amigo.
Quem ficou na cidade mora em meu peito.
Comigo.
Como sabe agradar minha dama e rondar minha fêmea,
não sai do meu pensamento.
Mas agora meu serviço aqui é atravessar o rio no assovio do vento.
Dormir nele aconchegada como se leito real fosse,
a receber sua água doce.
Tem concha na palavra aconchego
Menino rio, que graça de amor, que amor de beijo inocente
tem a doçura de suas águas mornas e calmas,
tem o caminho claro e líquido onde desfila sua correnteza!
A água leva a pedra e por isso não está mais aqui
aquele pedaço de rocha da última primavera.
Não mais no mesmo rio impera aquele grande seixo meio sépia meio dourado meio negro que julgávamos  firme  e capaz de sustentar nossos corpos, de dar apoio ao salto, trampolim ao desejo.
Pois que a pedra foi levada pela água para outra parte da maleável estrada, provando que de fixo mesmo não há nada.
O menino rio me ensinara que nem sempre o mais duro é o mais forte.
Sem precisar de muito volume o que é água penetra no sólido
e tira da terra sua estrutura de chão e o solo revolve.
Por um momento, enquanto areia e água se fundem,
o que ali morava, baila, dança, se move.
Na infinita brincadeira que também é aula me divirto
enquanto tiro boas notas, eu acho. Vejo na face da professora.
Com aprovação, me olha serena da cabeceira do rio,
seu trono de ouro de onde ministra as matérias do  verde reino.
Senhora da persistência, sorri e me diz que não há conquista sem paciência.
Meu pensamento nada até a cidade para buscar o amor
E fazer amor com ele no rio.
Ele vem, eu suponho.
Na tarde onde me rio,
tudo aqui é sonho.

Disponível em: